A escola ainda…

14 de junho de 2019by Ato Freudiano0
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A escola ainda…

ou o Ato Freudiano a-inda…

 

Wania de Almeida Barbosa

 

Parafraseio Collete Soler, para afirmar que não se trata da Escola sempre, mas da Escola ainda…

Esse “ainda” me chamou bastante atenção e me pôs num exercício de lê-lo em muitas de suas acepções, podendo ver nele várias indicações de direção. Ao recorrer ao dicionário, são diversos os sentidos em que comparece, e muitos deles indicam uma temporalidade: presente (até agora), passado (até então), futuro (até lá). Pode indicar algo que se renova (novamente, outra vez, mais uma vez) como também ter uma concepção adversativa (mesmo assim, apesar), entre outras… Se “ainda” indica algo de uma temporalidade, essa pode comparecer dando notícias de uma continuidade, algo em processo, como um gerúndio, talvez. Mas, por outro lado, remete àquilo que não está lá, inconcluso, que está por vir, que está a chegar….

Nesse sentido, falar ou escrever sobre o Ato Freudiano e seus 25 anos é colocar em movimento todas ou muitas das acepções desse “ainda”.

Se a escola sustenta-se por um fazer-se e, no seu dia-a-dia, este deve renovar-se enquanto proposta, talvez possamos pensar que isso se estabelece como efeito do próprio discurso que a constitui, o discurso analítico, com a no lugar de agente. É exatamente pelo fato de que o a, enquanto semblante, não se sustenta de maneira fixa e permanente, como afirmam Diana Mariscal e Andréia B. Tigre, mas antes como fogo fátuo, que talvez se possa pensar esses momentos de surgimento do semblante da a como instantes de escola. Nos momentos em que o real comparece e a resposta é o próprio trabalho, nos momentos que se pode confirmar que houve um cartel, a cada jornada que se realiza em ato, nos efeitos de uma transmissão que se estende a outros lugares e fazeres, talvez seja nesses momentos que se possa reconhecer a presença da causa freudiana e o fazer/fazendo Escola. Ou seja, a Escola ainda…

A isso associa-se a questão do desejo do analista como não sendo um desejo puro que, a exemplo de Antígona, pode levar ao pior. Mas como sendo efeito de uma operação, na qual o a, enquanto resto, torna-se causa, e da impotência da neurose passa-se ao campo do impossível e ao saber fazer aí que ele convoca. Antes dessa passagem, contudo, o desejo do analista é algo que pode comparecer ao longo de uma análise, dando notícias da destituição do sujeito suposto saber e do reconhecimento da castração. Nesse sentido e considerando, na Escola, a presença de não-analistas, como aqueles que não finalizaram a travessia analítica, deve-se reconhecer a presença do a enquanto causa, de forma evanescente ou efêmera. Essa dimensão do efêmero relativo ao desejo é assim descrita por Motta Salles: “… o desejo se apresenta de uma forma efêmera e pontual, mas traz algo novo e alarga o que anteriormente era apenas uma imagem – o também e nunca – de um passado”. Se esse desejo que sustenta uma análise é o mesmo que comparece na extensão, também em instantes, também efemeramente, pode-se novamente afirmar a Escola, ainda…

Outro elemento fundamental que parece remeter ao “ainda” em campo nessa leitura da Escola é o laço que nela se pretende sustentar. Collete Soler, ao falar do laço que deve prevalecer na Escola, especialmente ao considerar o cartel, destaca a questão da histeria.  Numa referência ao seminário “O avesso da Psicanálise”, ela diz que na histeria há uma modalidade específica de desejo (p55), por situar esse desejo no lugar de semblante, lugar que comanda a ordem do discurso. Tendo como paradigma o sonho da bela açougueira, no qual Freud afirma que há uma identificação a partir do desejo insatisfeito, Lacan diz na Direção da Cura que esse desejo insatisfeito, enquanto impasse, antes de aprisionar, abre “a chave do campo de todos os desejos”. Nesse sentido, Soler afirma que o desejo insatisfeito se distingue como uma estratégia de absolutização do desejo (55). E mais, diz que “sustentar o desejo insatisfeito é assegurar a presença mantida do desejo, isto é, da falta, pois satisfazê-lo é ou extingui-lo ou decepcioná-lo” (p 56). Assim assegurar, por esse laço, a presença mantida do desejo, isto é da falta, é mais uma vez apostar na Escola ainda…

A questão da identificação deve ser considerada também no cartel. Quanto a esse dispositivo, Soler não exclui que a questão da identificação compareça e a articula a partir das formulações de Lacan, no seminário A Identificação. Nesse seminário, Lacan afirma que o “nó social” procede da estrutura borromeana e revela a identificação com “aquilo que é o cerne, o centro do nó, […] o lugar do objeto a. Esse objeto domina aquilo que para Freud faz a terceira possibilidade de identificação, a da histérica, ao desejo do outro” (p50). Noutras palavras, seria uma identificação ao objeto que falta. Essa identificação se distingue das demais por ser uma identificação “por participação, […] participação no desejo que anima o outro”. Essas considerações permitem estabelecer uma concepção bastante interessante de transferência de trabalho. Segundo Colette Soler, a partir da identificação histérica, haveria “uma participação na falta que anima seu trabalho”. Dessa forma, a identificação se dá na medida em que ele trabalhe, a partir de seu não saber (P 50).

Portanto, uma proposta de cooperação ou participação como essa, remete-nos a ideia de que a Escola se faz de um coletivo ou de uma comunidade de experiência, como diz Lacan. Nela, se há o um a um, a singularidade e a necessidade de fazer valer a diferença, é preciso também reconhecimento de seus pares, como aqueles de quem se autoriza, além de si mesmo e que, sem fazerem cola como se propõe no cartel, permitem que a Escola seja não apenas uma junção de uns mas um lugar que, turbilhonado por uma falta, ponha em movimento a causa freudiana. Assim, se o movimento  não é continuo por si só, é preciso considerar uma forma de enlaçamento entre os analista da escola que não trave o nó, mas permita o turbilhonamento desse. E se o movimento é algo sempre a se impulsionar novamente, estamos na dimensão da Escola ainda…

Pelo lugar da psicanálise no mundo, pela função de lâmina cortante que seu discurso porta e que faz frente a uma absolutização da completude, veiculada pelo discurso capitalista em sua união com a ciência, as resistências a ela se presentificam a cada vez mais e com os mais diversos trajes: seja pela tentativa de regulamentação profissional, seja sob a presença de cursos técnicos de psicanálise, além do avanço de propostas terapêuticas rápidas e direcionadas, como o coaching, e a multiplicidade diagnóstica garantida por uma farmacologia que retoma uma perspectiva puramente orgânica, entre outras. Deve-se considerar que a resistência à psicanálise é e sempre foi algo presente na cultura, podendo se acirrar mais ou menos como efeito do discurso do qual ela é o avesso. Nesse contexto, a Escola é uma das vias pela qual se faz frente a essa resistência, a cada vez que reenvia a suas bases teóricas e práticas o seu ensinamento e transmissão. Se a resistência à psicanálise exige sua r-existência, ao fazer frente aos movimentos e discursos de totalidade, em sua insistência e ex-sistência, há a Escola ainda…

O Ato Freudiano que em 2010 se nominou Escola, comemora esse ano um percurso de 25 anos. Ao longo desse tempo, passos, impasses, um passe. Ao longo desse tempo, uma cisão, algumas deserções, por vezes, a presença silenciosa do real, noutras, seus rumores. Diante disso, um relançar sempre permitiu a continuidade do trabalho, levando em conta duas dimensões: o fracasso e o perseverar, como destaca Eliane Guerra, quando dos 15 anos do Ato. Ela afirma que “o fracasso e o perseverar tocam o real. O fracasso demonstra o encontro com o real e o perseverar é o real tomado como causa”.

O Ato Freudiano, 25 anos depois, perseverou e persevera. O Ato Freudiano – de “grupo intercartéis” à “ensino e transmissão” e à “escola” – a cada nova inscrição, a cada nominação, reafirma a causa freudiana ainda… O Ato Freudiano se propõe a sustentar a proposta Escola em todos as acepções que se considerou da Escola ainda… E ao sustentá-la, sustenta a lógica do não-todo que exige e ao mesmo tempo garante esse “ainda”, e permite sempre afirmar o Ato Freudiano a-inda…

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01/09/2018


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