Resposta à Revista Cult

24 de agosto de 2017by Ato Freudiano0
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Carta Aberta

Na edição especial do mês de agosto de 2016 da revista Cult, um dossiê veio a público. Contém trabalhos minuciosos sobre questões relativas aos descaminhos da psicanálise na contemporaneidade, que podem fazer obstáculo a virulência do saber fundado por Freud. Verificamos, com inquietação, os riscos de uma certa padronização, insistência na repetição de jargões e engessamento do discurso lacaniano agravados pela zoeira sem limites da internet, que não só redimensiona a noção de tempo e espaço como amplia o mal-estar do sujeito contemporâneo.

O dossiê inicia com a seguinte afirmação: “Porque hoje o discurso dos analistas lacanianos já está instituído. De certo modo, ele nem mais precisa de uma sociedade de psicanalistas, já anda sozinho. Melhor seria dizer que fala sozinho, nem precisa mais de mim, nem de você: tornou-se um discurso anônimo.” Em seguida, abre a série de artigos com a seguinte pergunta: “qual a melhor posição dos psicanalistas para estarmos, como diz o outro, à altura das questões do nosso tempo?” A psicanálise é um dos grandes acontecimentos da nossa época, como diz seu fundador, a terceira ferida narcísica.

Questão extremamente pertinente que nos faz retomar uma indicação muito precisa de Alain Badiou: o acontecimento é uma categoria não articulável que instaura uma verdade e deixa um resto, embora possa ausentar-se da memória explícita. Por isso é preciso uma intervenção, uma interpretação para dar consistência a essa singularidade. As dificuldades de ser fiel a esse acontecimento expressas na história da psicanálise exigiram uma intervenção e foi preciso que Lacan, num determinado momento, empreendesse um retorno a Freud.

Nesse sentido, o inédito da descoberta introduzida por Freud exige um percurso próprio na formação do analista baseado em dispositivos específicos. Assim, Lacan ao fundar a Escola em 1964 cria um dispositivo de trabalho – o cartel – como a forma privilegiada de produção de um saber ao sustentar o não todo em seu funcionamento. Não há um todo saber que responda ao mal-estar do ser falante – é isso que funda o saber psicanalítico a partir do que a clínica do nosso dia a dia nos ensina. Em 1967, Lacan lança a Proposição de 09 de outubro e acrescenta o passe como a possibilidade de verificação da passagem de analisante a analista. Abre assim para a comunidade de analistas uma possibilidade de trabalho ao convocá-la a uma verificação que deve estar bem distante de uma deontologia.

A Escola é, portanto, um coletivo de trabalho que deve estar atenta ao vivo da descoberta freudiana e aos riscos constantes de uma certa obscenidade que invade a sua institucionalização. Os conceitos psicanalíticos já se incorporaram ao acervo simbólico do nosso tempo às custas de uma imensa banalização. E é por isso imprescindível que os analistas retornem, com afinco, aos seus fundamentos para dar consistência a essa singularidade, porque os impasses e descaminhos assentados em um ideal são elementos estruturais que insistentemente se repetirão buscando abafar o inédito desse acontecimento. Se ater com entusiasmo a novidade que a nossa clínica cotidiana nos apresenta nos leva necessariamente a um espanto benvindo  que sempre comparece quando se lê e relê Freud e Lacan.

O conceito de contemporâneo de Agamben é também uma indicação que se articula com o que nos interessa nesses tempos sombrios: “A contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este, e ao mesmo tempo, dele toma distância … e ainda, contemporâneo é o que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro … é também aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém de seu tempo.” A partir do que Agamben nos traz, é bom retomar também a maneira como Lacan encerra o seu Escrito A psicanálise, razão de um fracasso:

“Quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização ( mal-estar que Freud pressentia) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus Escritos.”

 

Maria do Carmo Motta Salles

Membro do Ato Freudiano Escola de Psicanálise de Juiz de Fora


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