50 anos dos Escritos

24 de agosto de 2017by Ato Freudiano0
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50 anos dos Escritos

                    XXI jornada do Ato Freudiano – Escola de psicanálise de JF,  10/12/2016

“Os Escritos, uma obra de umas novecentas páginas, estavam para serem lançados. Lacan, se encontrando com Derrida, manifesta sua inquietação. Evocando a encadernação do volume, declarava: Você verá, isso não vai resistir.”

(Vous verrez, ça ne vas pas venir)

 

O que dizer dos 50 anos dos Escritos ou Escritos – 50 anos depois? É uma pergunta que abre para muitas possibilidades de leitura.

           Em primeiro lugar, é importante destacar que a publicação dos Escritos em 15 de novembro de 1966 é um marco na história da psicanálise. Além de ter ocorrido em um cenário de extrema efervescência cultural, se deve também à decisão e autorização do próprio Lacan diante do seu lugar na psicanálise e na cultura que não o deixava outra alternativa. A Escola Freudiana de Paris tinha sido fundada em 1964 como efeito de um percurso longo de trabalho implacável de retorno a uma leitura textual de Freud. Assim, os Escritos são o resto da elaboração de sua experiência clínica e produto de seu ensino oral que ressoavam naquele momento singular de Paris nos anos 60.  Momento de ideais  utópicos, ingênuos e libertários, tendo como um de seus slogans: É proibido proibir! Mas, o obscurantismo das falsas evidências já se anunciava, e a clínica já prenunciava outras perspectivas, sinalizando para uma simples margem de liberdade a partir de um irrepresentável que diz da dimensão do real.

           Os Escritos nos apresenta um conjunto de textos e conferências dispersos durante a sua trajetória até aquele momento, sendo tarefa impossível demarcar o estatuto de cada artigo, na medida que cada um deles nos traz contribuições fundamentais para uma leitura apurada da subversão radical empreendida por Freud. É uma escrita também que abre para a formulação dos matemas, que se dará um tempo depois. Então, a inquietação de Lacan na época da publicação dos Escritos: “ Isso não vai resistir” não se confirmou. Para surpresa do próprio Lacan, os Escritos foram um êxito de venda. Fato surpreendente tratando-se da obra de um autor que tinha fama de ilegível.  Mas, “isso resiste, insiste”, e confirma a inscrição na cultura do imperativo freudiano – “Onde isso era, devo advir – Wo Es war, soll ich werden.”

           É interessante também ressaltar a insistência do editor dos Escritos – François Wahl- que foi seu analisando e o instigou a essa publicação. Isso nos diz de um fora/dentro, que implica em uma posição que tem uma estreita relação com a prática clínica que nos coloca diante de uma experiência de leitura que consiste em experimentar uma certa ilegibilidade, um esvaziamento do sentido do imaginário e de um tempo para compreender.

           E, em se tratando dos Escritos, é sempre bom retomar as palavras do próprio Lacan:  “O escrito distingue-se, com efeito, por uma prevalência do texto, no sentido que veremos ser assumido aqui por esse fator do discurso –  o que permite a concisão que, a meu ver, não deve deixar ao leitor outra saída senão a entrada nele, que prefiro difícil. Este, pois, não será um escrito, como o entendo. … Pois a urgência de que agora extraio como pretexto para deixar de lado esse propósito só faz encobrir a dificuldade de que, ao sustentá-lo na escala em que devo aqui apresentar meu ensino, ele não se distancie demais da fala, cujas medidas diferentes são essenciais para o efeito de formação que procuro.”

( Lacan, A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud – Escritos, p.496)

           Se o estilo, a clínica e o ensino oral de Lacan já o colocavam em um certo lugar, a publicação dos Escritos o inscreve definitivamente em um lugar certo – em um lugar que não deixa ao leitor outra saída senão sua entrada na lógica do significante e da letra, ou seja, no próprio lugar do saber inconsciente. É um texto vivo que ao tensionar o leitor com suas equivocidades potentes, nos apresenta uma massa textual significante que faz surgir para quem o lê a pergunta insistente: é ilegível Lacan? O próprio Lacan chegou a dizer que sua escrita mantinha um significante em reserva, o que não deixa de ter certa relação com um objeto que em sua radical ausência vetoriza a direção da experiência analítica.  Certos textos, e a clínica nos diz isso no nosso dia a dia, só podem ser lidos uma vez que se assume sua ilegibilidade. Nesse sentido, os Escritos adquiriram o status de um clássico, cuja obra nunca termina de dizer aquilo que tem para dizer.

           Retorno a pergunta que abre este trabalho: o que dizer dos Escritos – 50 anos depois? Qual a sua atualidade? Além de nos remeter a um ponto de solidão extrema, nos convoca a uma leitura apurada dos pontos obscuros das falsas evidências que perpassam a contemporaneidade. É uma experiência de leitura que chama pelo desejo do leitor e que o desaloja da paixão pela ignorância e do imediatismo de qualquer resposta pronta. Conseguir fazer um certo atravessamento em algum dos escritos não é sem consequências.

         É uma escrita que põe o leitor na terceira margem do rio: “só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.”   (Guimarães Rosa – A terceira margem do rio/ Primeiras Estórias p. 33)

        Recorro também a um poema de uma paciente, que de um outro lugar, procura se localizar diante da imparidade, estranhamento e estarrecimento da palavra experimentada em uma análise: de um real ilegível e irrepresentável.

À margem de um leito… ímpar de amor

À margem das palavras  e… idas e vindas desse leito,

a busca de um dizer que seja leito,

em uma procura ímpar de amor.

Estar à margem

Acreditar na margem…

É buscar o fio tênue da própria convicção.

        Guimarães Rosa e a paciente sintetizam de uma maneira exemplar o que os Escritos nos ensina. Então, 50 anos depois, dado os rumos da civilização, mais do nunca se torna imperativo colocar em ato esse ensinamento porque é um escrito que põe em questão a atualidade. Estamos em um momento da história também ímpar, em uma conjuntura clínica e política que exige uma leitura que não se reduza ao campo dos enunciados que em seu fechamento, mantém uma via repetitiva e uma leitura ancorada em corrimões já desgastados pelo tempo.  Sabemos que todo texto tem uma dimensão sintomática e pede um deciframento. Se estamos vivendo em um tempo de estranhamento, de polarizações desmedidas, segregação e exclusão, ancorados por um ideal do tudo saber da ciência e de um empalidecimento da dimensão política, talvez possamos nos apoiar na formulação de Lacan: “O inconsciente é a política.”  Porque a psicanálise é o único discurso que estabeleceu um confronto de modo irredutível com o real. O que se inscreveu desde Freud fez corte e trouxe efeitos no mundo. Essa formulação de Lacan: “O inconsciente é a política” produz o enodamento necessário de um laço inédito que questiona radicalmente as ditas relações entre os seres falantes. O inconsciente exige que se rejeite qualquer benefício que provenha da ‘realidade’ para um sujeito ou uma comunidade e que se indague o laço de satisfação com o real… O Inconsciente implica, então, a articulação lógica da posição do sujeito para que se saiba o que ele procura.” ( E.V.  O inconsciente é a política – in Política e psicanálise/ RLF n. 44 p.17)

        Assim como os Escritos nos deixa em um certo compasso de espera e também em uma certa zona de silêncio que pode ser assim formulado: Eu sei que é impossível de ler, mas mesmo assim… e isso nos traz uma sensação de desamparo, mas também uma certa satisfação e até momentos de uma alegria fugaz, a civilização atual nos deixa esse legado: Eu sei que está impossível de ler, mas mesmo assim…

          

      


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