Vamos correr por que o lobo está vindo?

2 de junho de 2017by Ato Freudiano0
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Vamos correr por que o lobo está vindo?¹

Lilian Freire²

Esta comunicação alinhava um trabalho realizado ao longo de 2004, ano em que muito se falou sobre a formação de analistas e a necessidade de um posicionamento ético de todos aqueles que são afetados pelo saber inconsciente e acolhem seus efeitos. A intenção é deixar em aberto essas questões para novas e futuras indagações.

Fazer com que a hiância permaneça aberta foi o trabalho de Freud, que asseverou serem inconciliáveis o saber inconsciente e o modelo acadêmico. Esta questão está nos primórdios do movimento psicanalítico, momento inaugural em que a prática médica encontrou seu limite. Freud propôs algo distinto e radical: falar, construir um saber singular, romper com as regulamentações que normatizavam o desejo. Em 1900, o cenário era esse, mas parece não ter mudado: a ordem médica ainda se orienta a partir de um saber fechado e mecânico sobre o corpo. Em outro extremo – visando reintroduzir em seu campo a dimensão de sujeito que a ciência faz calar – está a psicanálise, situada em um cenário de burocratização das instituições, regressão à ordem biologizante, conformismo à normatização da práxis psicanalítica, estabelecimento de um comércio próprio.

Os cenários que constituem os séculos XIX e XX são, então, os mesmos? A expansão do capitalismo comanda as relações humanas e favorece o mercado de fármacos; o desenvolvimento tecnológico seduz e fala de uma organização planetária que vende a ilusão de totalidade e unidade, o que leva o sujeito a renunciar a si mesmo. Ficamos aí reduzidos à mídia, que precisa de um mercado consumidor em expansão e propõe políticas de universalização, sujeitos que se igualem em suas reivindicações. A ciência, com seu prestígio ampliado por sua aplicabilidade técnica, critica e explica os fundamentos da vida social. Questionando as tradições, a ciência tornou-se a religião do século XX, mas não colocou nada no lugar daquilo que destituiu e que tinha seu sustentáculo na história, na cultura, na religião e nos mitos.

Na prática analítica encontram-se a proliferação do acting-out e o consumo do corpo e de gadgets variados que satisfaçam a pulsão escópica. Com tantas ofertas, o sujeito se perde continuamente, o que é um paradoxo, já que visa justamente se localizar. Acting-out e consumo (de seja o que for) são respostas a essa declinação da função do Nome do Pai como intervenção que faz corte no gozo do Outro materno. Mas são respostas falaciosas, pois, como efeito desta declinação, escutamos o chamado: “vamos brincar na floresta enquanto o Sr. Lobo não vem”. Viva o gozo! Assim, o mundo repete monotonamente seus espaços, propondo ao sujeito que qualquer lugar pode ser seu mundo. O problema é que o sujeito não consegue se encontrar em lugar nenhum.

Certamente não foi este o propósito de Freud, que propôs uma abertura ao inconsciente, restaurando o lugar do sujeito: ele tem o que dizer. Para a psicanálise, que faz um contraponto e caminha na contra-mão deste chamado, ainda vale a ética cética que se encontra na proposta freudiana: uma ética que não dá certeza sobre os resultados, não promete a cura ou a salvação, uma ética que não garante a garantia. É a ética centrada no ato e que dá a liberdade para intervenções diferentes que o paciente reclama. Em suma: é a ética da invenção. Mas invenção de quê?

O que está no cerne da invenção é o ato de seu autor que aposta no ineditismo para romper com a reprodução automática. É à invenção que Freud e Lacan recorrem quando avistam os impasses que comprometeram a psicanálise. Mas cada impasse é um novo impasse e é preciso que se faça uma subversão do sujeito, desalojando-o de sua posição sintomática frente ao discurso do mestre, proferido na universidade e pela ciência. O novo é um desconcerto que fura o instituído, o habitual. Talvez a proposta feita pela psicanálise seja uma explicação possível para a mais recente evocação que parte do poder público e que atinge a todas as dimensões produtivas: regulamentar.

Ao verificar uma confusão entre os termos regulação e regulamentação, me propus fazer uma distinção. A regulação faz parte da lei simbólica desde sua constituição e é necessária. Ser regulado é estrutural do sujeito, assujeitado às leis do inconsciente, o que não implica que a invenção seja inibida. Já a regulamentação é de outra ordem, visa criar a ilusão de avanço pela via de um controle; é regra, um resumo de um conhecimento explicativo que diz como inventar. A invenção, como produto singular e inédito de seu autor, não viceja nas regras e normatizações. A regulamentação é a tentativa de calar o inconsciente, de velar o que suas formações revelam; é a penúltima cartada da cultura para conseguir esse efeito de obturar a fenda que o desejo abre e que se abre para o desejo. Depois disso, só há, como último recurso, a “caça às bruxas”.

Todas as tentativas de responder ao desconhecido e estranho, falharam. E ainda assim persiste nas ruas a duradoura oferta de uma rápida certeza.

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O acesso a esse preciosismo é indiscriminado, as filipetas são distribuídas nas ruas, revelando, pela enorme variedade de nomes de videntes e pela quantidade de propaganda acessível, o que o povo anseia. A prática do Oráculo é mais ancestral que o logos, pois os homens sempre buscaram respostas e garantias de vida, de riqueza, de fartura, de vitórias, de bem-estar. Mas, se no século VII a. C., o dom divino da Pitonisa exigia o trabalho de elaboração e interpretação daquele que buscava conhecer (a verdade, o futuro, a ascendência), hoje o oráculo tem outra função: não diz mais a verdade do sujeito, já que ninguém a quer. O oráculo de hoje, como a ciência, vende a ilusão de que há uma garantia de sucesso, pois há necessidade de resposta, da certeza de que a felicidade não é um conceito idealizado e de que poderemos driblar o desconforto e a morte.

A astrologia, a religião, a ciência, a tecnologia, o mercado, a pedagogia da felicidade, tentam oferecer o conforto físico e espiritual. Conforto que a psicanálise, ao apostar na hipótese do inconsciente, sabe ser impossível em sua totalidade e, para que ela não denuncie essa impostura, é necessário que silencie. Por isso também ela é posta em todo lugar, falada e aplicada aos mais diversos psicologismos e práticas de higiene mental. Mas, no tempo do “time is money” sua práxis é por demais lenta e, por isso, inaceitável. É preciso adaptá-la à brevidade das psicoterapias.

Se o “Freud explica” retornou como chiste, devido ao amplo acesso a Freud e à psicanálise, veiculado pela TV e na literatura de jornal, o que vemos retornar a partir de Lacan? Desconhecido pelo grande público, Lacan não é matéria para chistes. Circunscrito a uma comunidade bastante restrita de psicanalistas e intelectuais, o texto de Lacan pode favorecer o exercício de vaidade: permite que os jargões circulem depressa e banalmente, sem nenhum esforço de produção. Todas as expressões que custam muito trabalho para serem situadas no discurso analítico são esvaziadas.

No mito de Narciso, Eco, ninfa do bosque, se apaixona por sua beleza. Durante uma caçada, o jovem herói se perde de seus companheiros e chama por eles. Ao entrar em uma caverna é seguido por Eco que responde ao chamado de Narciso com uma proposta de amor. Mas não é Narciso quem responde e sim as palavras de Eco que se desdobram nas paredes de pedra. Para ela, no entanto, o som de sua voz lhe soa como se fossem palavras proferidas por Narciso, que, na verdade a rejeita. Eco fixa-se em suas próprias palavras, fascinada pela possibilidade de que fossem as respostas queridas vindas do outro amado. Abandonada, Eco definha e torna-se pura voz, desaparecendo no ar. Subsiste como a última palavra de um dito seu, sem embaraços, pois não há efeitos, visto que não há uma cadeia de significantes que os sustente.

As palavras portam um quê de sedução e podem nos lançar na armadilha da maldição de Eco. Ao ouvirmos apenas as palavras, ficamos presos numa teia de aparências, onde tais expressões são encontradas, castigadas e presas fáceis para o equívoco e para o desvio. É em função de equívocos e desvios inevitáveis, que a psicanálise deve escutar-se, verificando incansavelmente se os nomes de Freud e Lacan estão, ou não, atendendo à demanda por um messias, deste reformador do corpo social que tem por função preencher os hiatos. Se nos propomos a tal mitificação, nos propomos também a nos desviar da causa psicanalítica e nos entregamos à regulamentação do dia que nos permite brincar no bosque enquanto o Sr. Lobo não vem.

É mais fácil nos submetermos aos ditos dos líderes? É mais garantido quando a clínica segue os mesmos feitos de Freud ou os de Lacan? É mais confortável quando não temos que inventar nossa ação? É mais seguro quando nos atemos a uma “tecnocracia da cura”? Produz menos sofrimento quando o saber de manual consegue suplantar o saber inconsciente? Se as respostas a todas essas perguntas é sim, também será para o título deste trabalho: realmente, vamos correr, afinal, o Sr. Lobo está vindo! Um lobo que designa muitas coisas: desejo, angústia, falta, castração, causa, invenção, singularidade, mal-estar… E, para aqueles que responderem positivamente, ainda resta a ciência, a religião, a universidade, o mercado, a astrologia e o sintoma como companheiros de percurso. Mas é somente o que resta.

Retomo as palavras de Freud em seu pós-escrito ao texto A Questão da Análise Leiga. É preciso antes pontuar que este pequeno adendo é uma reconquista do que Jones e Eitington fizeram perder na tentativa de conciliarem as posições de Americanos e Europeus quanto a esta questão. Se a promessa que Eitington faz a Freud foi de suprimir apenas linhas, notamos sua conformidade implícita na supressão de duas páginas e meia. Ambos – Jones e Eitington – correram do lobo, com certeza. Mas Freud não o fez, recusando-se “à evidente tendência norte-americana de transformar a psicanálise numa simples empregada da psiquiatria”³. E não só da medicina, mas também do mercado, da mídia, da religião, do academicismo e do sucesso.

“(…) Certo, time (is) money, mas não se compreende porque deve converter-se em dinheiro com tanta pressa. Também conservaria seu valor de dinheiro se andasse mais devagar (…). Nas nossas regiões dos Alpes, diz-se habitualmente quando dois conhecidos se encontram ou se despedem: deixa o tempo. Nós já fizemos muita gozação sobre esta fórmula, mas frente à precipitação americana, aprendemos a discernir quanta sabedoria de vida se encontra nela”⁴.

 


 

¹ Trabalho inédito apresentado na Jornada de Encerramento do Ato Freudiano, em 11 de dezembro 2004. O título, e sua referência ao lobo, remete à história dos três porquinhos.

² Psicanalista, membro do Ato Freudiano.

³ Este fragmento da carta de Freud a Schmier de 5 de julho de 1938, foi destacado do texto “A análise leiga, uma questão crucial para a psicanálise”, In: A Análise é Leiga, Da formação do analista. Revista da Escola Letra Freudiana, 2003, nº 32.

⁴ Pós escrito a “A questão da psicanálise leiga”. In: A Análise é Leiga, Da formação do analista. Revista da Escola Letra Freudiana, 2003, nº 32, pp. 15.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro, Ediouro, 2000

FREUD, Sigmund. Psicanálise e Medicina (Análise Profana). Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Editora Delta, Volume XVIII, p. 141-221

VEGH, Isidoro. Por que ainda a psicanálise no tempo do DSM IV e as Psicoterapias e Terapias Alternartivas. Escuela Freudiana de Buenos Aires, 2001. www. efbaires.com.ar

VEGH, Isidoro. A psicanálise e seus interrogantes para o final do século. Escuela Freudiana de Buenos Aires, 2001. www. efbaires.com.ar

VIDAL, Eduardo. Pós-escrito a “A questão da análise leiga”. Rio de Janeiro, Publicação da Escola Letra Freudiana, Ano XXII, nº 32, 2003, p. 12-17


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