A biblioteca e seus ritmos: produção ou estagnação

1 de junho de 2017by Ato Freudiano0
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A biblioteca e seus ritmos: produção ou estagnação¹

Lilian Freire²

Uma biblioteca pode responder por dois efeitos: produção quando é lugar de oferta e procura, gerando movimento. Estagnação quando se burocratiza, fechando-se para o leitor.

Em A questão da Análise Leiga, Freud explica ao “locutor imparcial” que não basta o estudo teórico, é preciso análise pessoal. Ler é importante³: são poucos os objetos que encontram no sonho uma representação, embora suas relações simbólicas sejam vastas⁴. A linguagem usual⁵ fornece pequena parte delas; o mesmo simbolismo é matéria de mitos, contos, provérbios, canções populares, da linguagem corrente, da imaginação poética, e dos sonhos. Freud e Lacan exigem que o analista seja letrado: ele não pode se recusar a esta imersão na cultura⁶. O adjetivo “culto” é apenas consequência do trabalho e a Escola é, neste contexto, fundamental.

Letrado e Iletrado não devem ser usados como qualificativos, mas apontam para a posição do leitor diante do texto. C.S. Lewis dá ênfase ao “como” se lê e não ao “o que” se lê. Não faz uma teoria comportamentalista, pois é o desejo que está na base da leitura. Lewis não fala com os leitores, fala para a crítica literária⁷.

Letrado é a posição do leitor que insiste, aberto para o que pode receber do livro e, para isso, se abstém de pensamentos, juízo prévio e objetivos pré-programados, pondo-se fora do caminho ao entregar-se à invenção do autor. O letrado é aquele que fecha o livro, sem se fechar para os seus efeitos. Mas estar limpo diante de um texto é uma condição ideal, pois a própria experiência da leitura contamina o leitor que tem expectativas de encontrar algo, seja da ordem de uma resposta, de um prazer, de uma fuga, de uma comoção qualquer.

Iletrado é a posição do leitor que repete, descartando o livro assim que é lido: fecha-se ao que o livro pode fazer por ele,transformando o texto em diretriz de vida, matéria de repetição pela via da citação, eximindo-se de fazer a leitura própria. Lewis conclui: todos são iletrados em determinado momento da vida, quando crianças. A aposta é que se possa crescer e abdicar do narcisismo, a marca do infantil. Como Letrado e Iletrado são posições, pode-se passar de uma a outra, o que não implica em um julgamento de valor, seja da obra ou do leitor⁸.

Lewis faz do mito a fronteira que delimita estas duas posições: o iletrado pergunta: “O herói vai escapar?”. O letrado sente: “Nunca escaparei disto. Isto nunca escapará de mim.” Os textos de Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues geram resistência e embaraço para atores, críticos e leitores: estes efeitos derivam do fato de que tais textos têm a estrutura do mito, sem se prestar a identificações imaginárias? Não colocariam o leitor diante da posição que ocupa, ao desalojar o sentido e a compreensão? Também diante da poesia, não há letrado que se garanta: pura letra, a invenção é dada pela palavra e pelo ritmo que circula, arrastando o leitor para o campo da fala. Ler em voz alta, seja a poesia em verso ou em prosa, leva o leitor a experimentar o que é da ordem significante.

Mas Lacan adverte: “ler” não é o mesmo que “ler a letra”, revelando que não há relação entre literatura e psicanálise. Apenas um ponto, em uma zona de intercessão, permite este encontro, onde “algo” tem a face de “umbigo”, por ser insondável: um texto escapa; a letra lida, esta que é o suporte do sonho, não se pode dizê-la. O irrepresentável que persegue o autor é o mesmo irrepresentável que persegue o sonhador, e não porque possa se forçar uma equivalência entre ambos, mas porque esta é a lógica do inconsciente. Talvez, ao garimpar⁹ livros, o leitor busque a representação deste irrepresentável, para se aproximar disso que o determina e que ele não sabe dizer.

Lacan, em entrevista a Granzotto, define a psicanálise como uma prática em que um fala e outro escuta. O analista dá “somente as respostas que incita seu desejo”. Esta fórmula lacaniana inspira à reflexão: “Como pegar o vivo do texto? O que um texto nos ensina?” Seja analista ou não, o leitor deve estar aberto para sofrer os efeitos decorrentes da leitura e um deles pode ser o silêncio. Lacan produziu um saber sobre o “como ler” e o “ensino que vem deste campo” ao ler e construir um saber próprio, a partir daquilo em que foi tocado.

Jean-Guy Godin enfatiza o “analista letrado”, para perguntar: “Como produzir um saber que também toca no campo da psicanálise?” No encontro com a literatura, o analista é efeito daquilo que o causa. A psicanálise pode responder à literatura ao produzir um saber novo, é a resposta de Godin, que aponta para o fazer de Lacan em sua leitura de “Hamlet”: Hamlet é um personagem, mas não de caso clínico, não interessa se é histérico ou obsessivo. A peça discorre sobre o lugar do desejo. Se a leitura produz gozo e o analista, diante da literatura deve-se deixar afetar, como produzir um saber novo? Será que não se trata, justamente, de ser enlaçado a este campo pela via da insistência e não da repetição sintomática? Insistência que levaria a uma passagem do dito ao dizer: o “Ser ou não ser…” deixa de ser a citação erudita; torna-se o espaço onde se pode ler sobre a covardia que leva o sujeito a abrir mão de seu desejo, até que só reste a morte como escapatória. O que isso nos ensina?

Se a idéia de um analista leitor é arrogante, a idéia de um analista autor é indispensável. A produção do saber novo exige o público, um esmerar-se com a palavra, a passagem do signo ao significante. O escrito é o produto que instaura a interlocução quando o saber textual está em campo. Assim se acede interminavelmente à posição de letrado, onde se pode suprimir os clichês, os bordões esvaziados e os jargões.

A proibição do acesso aos livros é o recurso elementar do autoritarismo. “Farenheit 451” descreve um cenário em que o sujeito perde a condição de escolher, onde individualismo, drogas legítimas, sexo e conforto dão conta do mal estar. Um grupo faz resistência com bibliotecas clandestinas, que, ao serem descobertas, são destinadas ao fogo: este grupo, em fuga, cria uma sociedade composta de “pessoas-livro”, recurso utilizado para manterem vivas a história e a literatura.Também ali, o destino dos livros, após serem memorizados, é a fogueira. O mesmo Farenheit? Então, quando a pessoa-A República estiver próxima da morte, deverá passar para outro, o que decorou. As pessoas-livro padecem do mesmo congelamento? Esta herança pode ser recusada? Segundo Borges,

Os antigos não professavam nosso culto ao livro – algo que me surpreende – pois nele viam apenas um substituto da palavra oral. Aquela frase sempre citada – scriptamanent, verba volant¹⁰ – não significa que a palavra oral seja efêmera, mas, sim, que a palavra escrita é algo duradouro e morto. Por outro lado, a palavra oral tem alguma coisa de fugaz, de inconstante. Fugaz e sagrado, como disse Platão. Todos os grandes mestres da humanidade foram, curiosamente, grandes mestres da oratória.

… deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Não escreveu porque não quis tornar-se prisioneiro da palavra escrita. Sentiu, sem dúvida, que a letra mata e o espírito vivifica – o que, mais tarde, viria a ser citado na Bíblia.

De que ditadura se trata: daquela instaurada por nossa realidade psíquica ou da ditadura da lei? Bradbury¹¹ declarou que quis apenas mostrar o quanto amava os livros, denunciando que a TV usurpa o lugar da literatura e leva as pessoas a um conformismo acrítico. No engajamento a uma obra, pode-se apreender algo que tocaria no ponto preciso em que o leitor está ancorado à sua própria questão fantasmática? Esta leitura pode ser feita ou seria torcer o texto para caber na teoria? Godin indica que uma leitura a mais pode ser feita, mas o que realmente interessa à psicanálise é que se faça uma leitura que instaure um saber novo.

Farenheit ilustra a covardia, o desejo, a coragem e também a biblioteca viva: espaço onde o saber textual e o saber referencial se contêm, em movimento. A biblioteca, particular ou pública, tem que ser viva: possibilita o acesso ao saber próprio. Para um analista a biblioteca é inevitável, por ser lugar de trabalho, e representa mais do que o fazer burocrático por vetorizar o ensino e/ou a transmissão como suporte e baliza de um percurso de formação. Novamente é Borges a fonte:

 

Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.

… a memória da humanidade. Isso é o livro. …

Microscópio e telescópio apontam para a pulsão escópica. O engajamento à leitura responderia à pulsão, visto que olhar e voz são objetos pulsionais (por isso ler em voz alta é um trabalho de valor ao analista)? Ler é ato, na medida em que deixa, como lastro, um resto. Mas para que tal projeto seja viável, é necessário que este instrumento, portátil e possível, o livro, esteja disponível. O olhar que a biblioteca exige é, portanto, democrático, na medida (e somente nesta perspectiva) em que possibilita o acesso, por qualquer um, a este instrumento. Exige uma posição ética e decidida: decidida porque requer esforço além da tarefa; ética porque revela, no manejo da regra, o ato de manter o significante em circulação. Não é escolha da vontade, é convocação do desejo.

 


 

¹ Trabalho inédito apresentado na Jornada de encerramento do ato Freudiano, em 2013

² Psicanalista, membro do Ato Freudiano, Escola de Psicanálise de Juiz de Fora.

³ Freud põe em relevo a mitologia: “Também aqui o ajudará a Mitologia a acreditar na psicanálise. O mesmo Cronos, que devora seus filhos, castrou antes a seu pai Urano e foi, por sua vez, castrado por seu filho Zeus, a quem a astúcia da mãe salvou de morrer com seus irmãos” (pag. 174)

⁴ Conferência X, O Simbolismo no Sonho.

⁵Em “História do Movimento Psicanalítico”, Freud afirma que a Associação Livre é pobre no que diz respeito ao simbolismo.

⁶ O ensino psicanalítico compreenderia também matérias estranhas ao médico e a que não recorre na sua atividade profissional: História da Civilização, Mitologia, Psicologia das Religiões e Literatura. Sem uma boa orientação nesses campos não pode chegar o analista a uma perfeita compreensão de grande parte de seu material. (pag 216).

⁷ (…) Para pessoas assim, ler torna-se, com frequência, mero trabalho. (…) Lembro-me bem da reprimenda de que fui alvo da parte de um homem para quem, quando nós saímos de uma sessão de exames, tive a falta de tato de mencionar um grande poeta sobre o qual muitos candidatos haviam escrito. Sua atitude (esqueci as palavras exatas) poderia ser expressa da seguinte maneira: “Bom Deus, você ainda quer continuar com isso depois do expediente? Você não ouviu o sinal tocar?” Só consigo sentir pena por aqueles que são reduzidos a essa condição por necessidade econômica e excesso de trabalho. Infelizmente, ambição e tendência ao antagonismo também produzem o mesmo resultado. LEWIS, C.S. Um experimento na crítica literária. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 12-13.

⁸ Para um, uma obra pode capitalizar além do que texto ensina ou transmite, e não pode ser qualificada como uma boa obra, no universal. Se para outro, a mesma obra não produz tais efeitos, não é da ordem da verdade paranoica que ela seja ruim.

⁹ “O artista, como o garimpeiro, vive de procurar aquilo que não perdeu”. Cildo Meireles.

¹⁰ NOTA DO AUTOR: Tradução “textos permanecem, as palavras voam”.

¹¹ Ray Bradbury é autor do livro Farenheit 451, adaptado para o cinema, e que foi dirigido por François Truffaut, em 1966.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luís. O livro. IN: BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília, UnB, 1996, p. 5-11.

FREUD, Sigmund. Psicanálise e Medicina (Análise Profana). Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Editora Delta, Volume XVIII, p. 141-221

FREUD, Sigmund. História do Movimento Psicanalítico. Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Editora Delta, Volume XVIII, p. 5-72

FREUD, Sigmund. Conferência X: O Simbolismo no Sonho. Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro, Editora Delta, Volume, p. 165-189

GODIN, Jean-Guy. Notas acerca da leitura de um texto literário no discurso analítico. Rio de Janeiro. Publicação da Escola Letra Freudiana, Ano XVII, nº 26, 2000. p. 93-100. Tradução: Olga Maria Carlos de Souza.

LACAN, Jacques. Entrevista a Granzotto Não pode haver crise da psicanálise. Juiz de Fora, Revista do Ato Freudiano, ano 1, nº 0, p. 39-50. Tradução: Orris Ricardo Canedo de Almeida

LEWIS, C. S. Um experimento na crítica literária. São Paulo, Editora UNESP, 2009.

SCOVINO, Felipe. Cildo Meirelles. Coleção Encontros. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2009


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