Práticas da Letra & Psicanálise 2024: Ela é assombrada – Considerações sobre TÁR
Ela é assombrada
— Considerações sobre TÁR —
por Théo Almeida
Hoje em dia, há uma fixação proveniente do Zeitgeist por filmes que tratam de questões sociais; por histórias sobre posições e estruturas de poder; por filmes, de preferência, baseados em fatos reais.
Tento saber o mínimo possível sobre os filmes que vejo, portanto, ao me deparar com TÁR, ao final da sessão, me vi procurando, quase que de maneira automática, a Wikipédia de Lydia Tár, como se ela realmente existisse, como se o filme fosse uma história real, uma biografia. Para o meu espanto, descobri que o filme é um trabalho de ficção, totalmente original.
Apenas após a revisão, pude apreciar a obra pelo que realmente é: um estudo de uma personagem “torta”, porém, totalmente imparcial — coisa que é rara, nos dias atuais.
Lydia Tár é uma personagem multifacetada. Isso acontece porque temos acesso a tudo que faz, ouve, pensa — temos acesso até ao seu inconsciente: o filme nos mostra os seus sonhos.
Sabemos que todos os sonhos são pesadelos. E os dela não são exceção à essa regra. Em um momento específico do filme, inclusive, a linha entre o que é real e o que é delírio fica até meio confusa.
O ambiente “asséptico” que o filme se apresenta, a partir de uma mise-en-scène extremamente limpa, começa a se sujar um pouco. Como se a forma que o filme se apresenta fosse se transformando em outra coisa, conforme a personagem vai entrando em sua espiral particular até chegar, finalmente, à sua inevitável queda.
Por conta disso, é quase impossível julgar Lydia Tár. Porque a conhecemos muito bem: suas virtudes — que são muitas — e suas falhas — que são muitas, também.
A personagem é semelhante a qualquer um de nós, nesse sentido. Porque o filme prefere se ater aos pormenores da zona cinzenta em que ela habita.
Isso que torna TÁR um filme diferente dos demais.
Em tempos de comunicação em massa, em que as redes sociais trabalham como juiz, júri e executor e o primeiro instinto humano é demonstrar quem está certo e quem está errado, o filme faz recusa a esse método e ousa ficar “em cima do muro”. E não falo isso de maneira pejorativa, como muitos têm feito. Falo isso com total admiração.
O filme ousa retratar a personagem não como antagonista, mas, dependendo da leitura, como vítima, apesar de ser culpada pelos seus crimes — em sua maioria, em se tratando da posição de poder que ocupa em “seu mundo”, ao meu ver.
Isso que o difere de outros filmes como “Parasita”, “Bacurau” e “Triângulo da Tristeza”, por exemplo. Nestes filmes citados, há um maniqueísmo que me incomoda bastante, justamente porque os mesmos se recusam a mergulhar na zona cinzenta.
Há antagonistas muito claros, nos três casos.
Parecem que tais filmes têm medo de se sujar, por assim dizer, apesar de apresentarem situações extremamente violentas, tanto no sentido ético quanto no sentido moral da estrutura dramática da narrativa.
Parece que há um apelo até de agradar o grande público, nos casos citados, como se os filmes quisessem se adequar ao Zeitgeist, por assim dizer.
Não tenho muito mais a comentar sobre isso, pois acho que as grandes obras cinematográficas que perduram são exatamente as que questionam o espírito da época, não o contrário.
Ousam fazer perguntas, não conceder respostas.
Com citações visuais que vão de Apichatpong Weerasethakul, Tarkovski, Chantal Akerman à Fassbinder, TÁR é uma colagem; um mosaico complexo; um labirinto de elipses que nunca concede respostas fáceis ao expectador, justamente por deixar o trabalho de interpretação por conta do mesmo.
Esse é o papel das obras de arte.
Talvez isso justifique a longa duração do filme.
Em TÁR, há uma tentativa de interrogar o imediatismo vigente, de fazer uma pergunta no meio de tantas “verdades todas” que povoam o imaginário contemporâneo.
Isso que precisa ser valorizado: a tentativa de realizar uma pergunta, não de conceder uma resposta pronta e imediata.
Texto originalmente escrito para a atividade Práticas de Letra & Psicanálise 2024: Apresentação e discussão sobre “TÁR”, um filme de Todd Field.