O avesso da multidão: questões sobre um laço original

24 de junho de 2019by Ato Freudiano0
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O avesso da multidão: questões sobre um laço original

 

Marina de Oliveira Valle

 

O presente trabalho surge como efeito de algumas questões levantadas, até o momento, no cartel ‘Psicanálise e Laço social’, mas que também encontraram ressonância em alguns outros espaços da escola.

Freud sempre foi muito atento às questões do coletivo, e não deixou de trazer uma leitura sobre como ele se estrutura. Ele chama a atenção, especialmente,  ao fenômeno das identificações que contribui nessa estruturação, favorecendo uma espécie de nivelamento, dos integrantes do grupo, de uma maneira um tanto surpreendente. Lacan partindo dessa trilha aberta por Freud e caminhando um pouco mais além, traz, entre outras coisas, um outro ponto muito importante à psicanálise, por estar ligada à sua própria sobrevivência, que é a questão da transmissão, na formação do analista. Não escapa à observação de Lacan, como diversas distorções da psicanálise, distorções que chegam a desfigurar a obra freudiana, estão ligadas aos efeitos de grupo encontrados em diversas instituições psicanalíticas, como a IPA. Em seu retorno a Freud, resta a Lacan não apenas resgatar a obra, mas evidenciar que a comunidade analítica também está suscetível às identificações, embora não possa “se dar ao luxo” de se entregar a elas. Ressalta a especificidade do discurso psicanalítico em relação aos outros, como Freud procurou demarcar em diversos momentos da história da psicanálise, a seu próprio modo.

Lacan, então, propõe uma Escola que possa fazer frente aos efeitos de cola que tendem a surgir devido à própria estrutura. Inventa dois dispositivos de transmissão, o cartel e o passe. O cartel, cuja estrutura é borromeana é considerado por ele, a porta de entrada da Escola; talvez porque o cartel, caso haja cartel, o que só se verifica no a posteriori, permita o acesso, em extensão, à experiência de um elemento que vai de encontro à multidão: a singularidade de cada um. Inclusive, não é uma singularidade radical que pode ser decantada ao longo de um processo de análise? Mas aqui é importante ressaltar que essa singularidade também implica em outra forma de fazer laço. Embora a diferença de cada um separe, não é possível abrir mão do laço, que envolve alguma identificação. Como Lacan coloca, em 1975: “certamente que os seres humanos se identificam a um grupo…se eles não o fizessem, eles estariam perdidos…Mas eu não disse a que ponto eles poderão ser identificados” [Seminário RSI, 1975 – citado no texto da Maria Cristina Moura vol.8, Transfinitos] Portanto, para que exista encontro na diferença, é necessário que haja um ponto de identificação que, ao mesmo tempo, não torne o cartel um agrupamento.

Colette Soler articula que é a “identificação (…) ao objeto que falta ao atar do nó. Isso quer dizer que cada um pode se identificar a cada um na medida em que ele trabalhe a partir de seu não saber, mesmo que seja produzindo um mais de saber”. Não havendo mestre que guie e se tratando de um trabalho  a partir do não saber de cada um, de um objeto que falta, que, então, causa o desejo, há a possibilidade de uma “identificação (…) por participação na falta que anima o trabalho do outro” (“O que faz laço?”, Colette Soler). Uma transferência de trabalho pode encontrar suporte nessa forma de identificação e isso viabiliza uma certa circulação de significantes de um sujeito a outro. 

Aqui comparece uma proposta de transmissão que, provavelmente, faz jus à radicalidade do discurso psicanalítico, porque coloca no centro de sua estrutura o objeto causa do desejo e dessa forma aposta em um laço social não-todo, um laço social original, portanto, que, nos termos de Annie Tardits, “vem como suplência à não-relação sexual” (“Análise leiga, uma questão crucial para a psicanálise”, Annie Tardits, pg 39). A autora em outro texto, remetendo-se às formulações de Lacan, escreve que “não existe conjunto do Simbólico, do Imaginário e do Real, mas que eles ficam juntos ao serem enodados em torno de um furo. Esse enodamento (…) pode esclarecer a maneira que podem ficar juntos ‘uns’ não muito inteiros, heterogêneos em sua relação singular com a psicanálise” (“As formações do psicanalista”, Annie Tardits, pg 153). Orientar-se por esse furo é o que pode permitir a uma Escola a manter-se afinada à invenção freudiana.

Através do cartel, dobradiça entre intensão e extensão, espera-se que esse furo possa ser transmitido e que ele possa instigar alguma produção que, como desde a inscrição em nome próprio antevê, é uma produção que dá notícia da “relação singular de cada um com a psicanálise”. Não seria essa a abertura que viabiliza que uma invenção possa ser inscrita, se pudermos considerar que o desejo é, por excelência, autoral? E a cada (re)invenção, um relançamento, porque o furo, o real, continua em campo. Nesse caso, a produção do cartel é radicalmente diferente de um resultado da acumulação de conhecimento, porque o conhecimento já está dado desde a partida. O saber, não. É uma construção, é um caminho sempre a ser feito, independentemente do trecho em que se encontre. É importante sublinhar, porém, que essa reinvenção da psicanálise, reinvenção necessária para não se perder o frescor nem o entusiasmo, não se dá apartada de um laço. Aqui arrisca-se a dizer que, em um movimento moebiano, é possibilitada por ele, conforme Georges Bataille nos lembra: “o que eu penso, eu não pensei sozinho”(conforme citado por Maurice Blanchot em “Comunidade inconfessável”). Talvez seja disso que Freud esteja falando quando, sobre a sua invenção, diz que: “a ideia pela qual eu estava me tornando responsável de modo algum se originou em mim”.


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