“Ainda estou aqui!”

4 de junho de 2025by Ato Freudiano0
artigos-1280x855.png

“Ainda estou aqui!”

Wania de Almeida Barbosa

“O sentido do retorno a Freud é mostrar que há gume no que Freud descobrira, o que ele fazia entrar no jogo de uma forma completamente inesperada, pois era de fato a primeira vez que se via surgir alguma coisa que não tinha estritamente nada a ver com o que quer que houvesse sido dito antes. O inconsciente de Freud é a incidência de uma coisa completamente nova” 1

 “Esse outro erro logo forneceu a chave para a solução do primeiro”2.

O que falha, fala! Por aí, isso fala!

Ler “A psicopatologia da vida cotidiana” tem sido um certo encontro com o impossível, contando, também, com o possível que o constitui.

Retomar um texto de 2000 e …20? 2020!!! Ato falho, quando pensava, pretendia escrever 1901, data da publicação do livro. Texto atualizado em 120 anos, portanto. Nada da ordem da Inteligência Artificial. Daí, então, a peculiaridade deste trabalho de leitura e de toda a Psicopatologia da vida cotidiana.

Retornar a Freud de 1901 reforçou a exigência de seguir o rigor de seu pensamento que desemboca no vigor da novidade ali introduzida. Por que, em 2024, uma atividade de leitura baseada nesta obra? Podemos partir dos inúmeros e incontáveis retornos de Freud a este texto, ao longo de sua obra, indicando que algo insiste. O inconsciente insiste, até se fazer ouvir. E se o real insiste e retorna ao mesmo lugar, ao analista, um princípio, “d’y être habitué”3.

Uma metáfora à leitura foi se constituindo: mergulhar… nadar… em águas do inconsciente. Águas que não se atravessam sem resistência, por vezes. Havia o risco de afogamento em meio a múltiplos milhões de exemplos. Mas eram eles, exatamente, e alguns deles especialmente que nos permitiam respirar, ao tocar naquilo que, em nós falantes, falha: palavras, memórias, atos. Nos implicando diretamente, um a um, e neste caso sem exceção, constituindo nosso cotidiano.

Frente a uma face cada vez mais impactante, brutal, irrespirável, o cotidiano conta também com arestas que permitem tangenciar o inefável, o efêmero, o pungente. Arestas que tocam as perguntas mais essenciais. E fazem abalo! Cotidianamente – em público, intimamente, nas mídias – milhões de milhares de eventos que poderiam estar como exemplo na Psicopatologia da Vida Cotidiana se fazem. E fazem, com isso, reverberar Goethe, que com seu Fausto abre o livro: “o ar está tão cheio dessas aparições que ninguém sabe como evitá-las”. Quando evitá-las é quase impossível, mesmo que seja por um instante, ao fal(h)ante que nela esbarra.  E no caso do analista é essencial que não as evite, para que destas a-parições se desvele o que não é simples aparência, se não a própria estrutura.

 Com este livro de 1901, Freud deu partida e suporte a uma obra que tem em seu cerne a falta; o objeto, perdido; um princípio: o do prazer, que tenta, mas falha; que tem no efêmero sua temporalidade; e no desejo, sua ética. Curiosamente, já estão lá, latentes, cada um destes conceitos, em esboço para formalizações posteriores. Estão lá no que Lacan chama a Coisa Freudiana, “na coisa que ele (Freud) nomeou e que é o inconsciente. […] falar do inconsciente como daquilo que antes de Freud não existia não é uma maneira tão má de se expressar, por uma boa razão: é que, afinal de contas, uma coisa só ex-siste, só começa a funcionar a partir do momento em que é realmente nomeada por alguém. […] É partir da ideia de buraco, é dizer ao invés de fiat lux: fiat furo e pensem que Freud, enunciando a ideia do inconsciente, não fez outra coisa. Ele disse logo que havia algo que se faz buraco, que é ao redor disso que se extende o inconsciente, e que esse inconsciente tem a propriedade de só ser, por esse buraco, aspirado, tão bem aspirado que não estamos acostumados a reter dele nem uma pontinha, ele desparece inteiro nesse buraco”4. O que deflagra, portanto, a importância das formações do inconsciente, enquanto aquilo que do recalcado retorna ao discurso, abrindo uma via ao inconsciente.

A psicopatologia é modelo e metáfora para o mais banal, para o mais cotidiano do falante, ao revelar a estrutura. “O inconsciente estruturado como uma linguagem”5 é aforismo que da Psicopatologia da Vida Cotidiana pode ser extraído ou a ela aplicado. É, junto ao O Chiste e sua relação com o Inconsciente, um dos livros que, pelo seu lugar inaugural, demonstra o esforço de um trabalho que visa apresentar o inconsciente, sua lógica e sua ética. Dar um lugar à Psicopatologia da vida cotidiana, num seminário de leitura do texto Freudiano está conforme Lacan: “essas coisas […] foram os passos de Freud, e cada um de seus passos merece ser preservado, é portador de ensinamentos e rico em consequências”6.

Um dos ensinamentos, cujas consequências têm na clínica lugar de incidência, é sobre o determinismo inconsciente que rege aquilo que se supõe como vontade e conhecimento. Trata-se de um inconsciente hábil, que calcula. Suas intenções se declaram e revelam o sujeito que o habita, cuja coragem é de uma convicção, e a certeza, por vezes, sonâmbula7. Ele faz sua aparição, apoiado numa fantasia, no desejo que faz furo, compulsoriamente, através da fal(h)a-. Ao fracasso é restituída, pelos atos falhos, uma dignidade -“nossos atos falhos são atos que são bem sucedidos”8. Através de sua leitura poderá ser constituída uma passagem em direção ao saber. A aproximação com o chiste é inevitável. Lacan enfatiza, no Sem V, “a ambiguidade da tirada espirituosa com o lapso como ambiguidade fundamental e constitutiva” (pg.71), e afirma ainda que ambos se produzem a partir de uma mesma economia significante (pg.46). Isso, contudo, já se pode ler em Freud de 1901: o intempestivo, o cômico, o riso estão entre os efeitos reconhecidos por ele nos atos falhos. Presença do sujeito do inconsciente. Indefectível!

O esquecimento, o equívoco, o extravio, as lembranças infantis são materiais que, lapidados pela associação livre, reverberam algo mais, a partir da fenda que re-abre. Relegar as falhas, os fracassos, é comum das exigências globais; da estrutura, talvez. Mas Freud recolhe este material, o eleva a um lugar de significante que interroga e por não significar a si mesmo, dispara a série. Um trabalho que se institui por um certo abalo, não sem mal-estar, mas passível de efeito de abertura para aqueles que dele fazem enigma.

Do primeiro e último tempo desta leitura, algo se inscreveu: Freud exige longos mergulhos, braçadas decididas em boas e por vezes difíceis travessias, a natureza das águas pode ser revolta, contudo a convicção da próxima respiração dá o fôlego a quem, do inconsciente, escuta: “ainda estou aqui!”9

 

XXVIII Jornada de Encerramento

                                                                              XX Jornada de Cartéis

                                                                              14/12/2024

____________________________

  1. Triunfo da Religião, pág. 69
  2.  Psicopatologia da vida cotidiana – Cap 7 “A” – Esquecimento de impressões e conhecimento, pág. 204
  3. Tentativa de redução da fala de Lacan, no Triunfo da Religião: “Deve-se poder se habituar ao real”, pág. 76; “É disso (do real) que se ocupam os analistas”. pg. 63.
  4. Lacan (1975). “A função dos Cartéis” p. 114 e 115
  5. Lacan, Sem XI, pg. 25
  6. “Lemos a Psicologia da Vida Cotidiana como lemos o jornal, e a conhecemos tão de cor que achamos que isso não merece que nos detenhamos…” (Pág. 41, Seminário V)
  7. Expressões cunhadas por Freud, na Psicopatologia da Vida Cotidiana
  8. Lacan. Seminário 2.
  9. Em referência ao filme de mesmo nome, de Walter Salles, e ao texto “A escola, ainda…”, (2018 – 25 anos do Ato Freudiano) constante do Blog do Ato Freudiano.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *