“Ainda estou aqui!”

“Ainda estou aqui!”
Wania de Almeida Barbosa
“O sentido do retorno a Freud é mostrar que há gume no que Freud descobrira, o que ele fazia entrar no jogo de uma forma completamente inesperada, pois era de fato a primeira vez que se via surgir alguma coisa que não tinha estritamente nada a ver com o que quer que houvesse sido dito antes. O inconsciente de Freud é a incidência de uma coisa completamente nova” 1
“Esse outro erro logo forneceu a chave para a solução do primeiro”2.
O que falha, fala! Por aí, isso fala!
Ler “A psicopatologia da vida cotidiana” tem sido um certo encontro com o impossível, contando, também, com o possível que o constitui.
Retomar um texto de 2000 e …20? 2020!!! Ato falho, quando pensava, pretendia escrever 1901, data da publicação do livro. Texto atualizado em 120 anos, portanto. Nada da ordem da Inteligência Artificial. Daí, então, a peculiaridade deste trabalho de leitura e de toda a Psicopatologia da vida cotidiana.
Retornar a Freud de 1901 reforçou a exigência de seguir o rigor de seu pensamento que desemboca no vigor da novidade ali introduzida. Por que, em 2024, uma atividade de leitura baseada nesta obra? Podemos partir dos inúmeros e incontáveis retornos de Freud a este texto, ao longo de sua obra, indicando que algo insiste. O inconsciente insiste, até se fazer ouvir. E se o real insiste e retorna ao mesmo lugar, ao analista, um princípio, “d’y être habitué”3.
Uma metáfora à leitura foi se constituindo: mergulhar… nadar… em águas do inconsciente. Águas que não se atravessam sem resistência, por vezes. Havia o risco de afogamento em meio a múltiplos milhões de exemplos. Mas eram eles, exatamente, e alguns deles especialmente que nos permitiam respirar, ao tocar naquilo que, em nós falantes, falha: palavras, memórias, atos. Nos implicando diretamente, um a um, e neste caso sem exceção, constituindo nosso cotidiano.
Frente a uma face cada vez mais impactante, brutal, irrespirável, o cotidiano conta também com arestas que permitem tangenciar o inefável, o efêmero, o pungente. Arestas que tocam as perguntas mais essenciais. E fazem abalo! Cotidianamente – em público, intimamente, nas mídias – milhões de milhares de eventos que poderiam estar como exemplo na Psicopatologia da Vida Cotidiana se fazem. E fazem, com isso, reverberar Goethe, que com seu Fausto abre o livro: “o ar está tão cheio dessas aparições que ninguém sabe como evitá-las”. Quando evitá-las é quase impossível, mesmo que seja por um instante, ao fal(h)ante que nela esbarra. E no caso do analista é essencial que não as evite, para que destas a-parições se desvele o que não é simples aparência, se não a própria estrutura.
Com este livro de 1901, Freud deu partida e suporte a uma obra que tem em seu cerne a falta; o objeto, perdido; um princípio: o do prazer, que tenta, mas falha; que tem no efêmero sua temporalidade; e no desejo, sua ética. Curiosamente, já estão lá, latentes, cada um destes conceitos, em esboço para formalizações posteriores. Estão lá no que Lacan chama a Coisa Freudiana, “na coisa que ele (Freud) nomeou e que é o inconsciente. […] falar do inconsciente como daquilo que antes de Freud não existia não é uma maneira tão má de se expressar, por uma boa razão: é que, afinal de contas, uma coisa só ex-siste, só começa a funcionar a partir do momento em que é realmente nomeada por alguém. […] É partir da ideia de buraco, é dizer ao invés de fiat lux: fiat furo e pensem que Freud, enunciando a ideia do inconsciente, não fez outra coisa. Ele disse logo que havia algo que se faz buraco, que é ao redor disso que se extende o inconsciente, e que esse inconsciente tem a propriedade de só ser, por esse buraco, aspirado, tão bem aspirado que não estamos acostumados a reter dele nem uma pontinha, ele desparece inteiro nesse buraco”4. O que deflagra, portanto, a importância das formações do inconsciente, enquanto aquilo que do recalcado retorna ao discurso, abrindo uma via ao inconsciente.
A psicopatologia é modelo e metáfora para o mais banal, para o mais cotidiano do falante, ao revelar a estrutura. “O inconsciente estruturado como uma linguagem”5 é aforismo que da Psicopatologia da Vida Cotidiana pode ser extraído ou a ela aplicado. É, junto ao O Chiste e sua relação com o Inconsciente, um dos livros que, pelo seu lugar inaugural, demonstra o esforço de um trabalho que visa apresentar o inconsciente, sua lógica e sua ética. Dar um lugar à Psicopatologia da vida cotidiana, num seminário de leitura do texto Freudiano está conforme Lacan: “essas coisas […] foram os passos de Freud, e cada um de seus passos merece ser preservado, é portador de ensinamentos e rico em consequências”6.
Um dos ensinamentos, cujas consequências têm na clínica lugar de incidência, é sobre o determinismo inconsciente que rege aquilo que se supõe como vontade e conhecimento. Trata-se de um inconsciente hábil, que calcula. Suas intenções se declaram e revelam o sujeito que o habita, cuja coragem é de uma convicção, e a certeza, por vezes, sonâmbula7. Ele faz sua aparição, apoiado numa fantasia, no desejo que faz furo, compulsoriamente, através da fal(h)a-. Ao fracasso é restituída, pelos atos falhos, uma dignidade -“nossos atos falhos são atos que são bem sucedidos”8. Através de sua leitura poderá ser constituída uma passagem em direção ao saber. A aproximação com o chiste é inevitável. Lacan enfatiza, no Sem V, “a ambiguidade da tirada espirituosa com o lapso como ambiguidade fundamental e constitutiva” (pg.71), e afirma ainda que ambos se produzem a partir de uma mesma economia significante (pg.46). Isso, contudo, já se pode ler em Freud de 1901: o intempestivo, o cômico, o riso estão entre os efeitos reconhecidos por ele nos atos falhos. Presença do sujeito do inconsciente. Indefectível!
O esquecimento, o equívoco, o extravio, as lembranças infantis são materiais que, lapidados pela associação livre, reverberam algo mais, a partir da fenda que re-abre. Relegar as falhas, os fracassos, é comum das exigências globais; da estrutura, talvez. Mas Freud recolhe este material, o eleva a um lugar de significante que interroga e por não significar a si mesmo, dispara a série. Um trabalho que se institui por um certo abalo, não sem mal-estar, mas passível de efeito de abertura para aqueles que dele fazem enigma.
Do primeiro e último tempo desta leitura, algo se inscreveu: Freud exige longos mergulhos, braçadas decididas em boas e por vezes difíceis travessias, a natureza das águas pode ser revolta, contudo a convicção da próxima respiração dá o fôlego a quem, do inconsciente, escuta: “ainda estou aqui!”9
XXVIII Jornada de Encerramento
XX Jornada de Cartéis
14/12/2024
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- Triunfo da Religião, pág. 69
- Psicopatologia da vida cotidiana – Cap 7 “A” – Esquecimento de impressões e conhecimento, pág. 204
- Tentativa de redução da fala de Lacan, no Triunfo da Religião: “Deve-se poder se habituar ao real”, pág. 76; “É disso (do real) que se ocupam os analistas”. pg. 63.
- Lacan (1975). “A função dos Cartéis” p. 114 e 115
- Lacan, Sem XI, pg. 25
- “Lemos a Psicologia da Vida Cotidiana como lemos o jornal, e a conhecemos tão de cor que achamos que isso não merece que nos detenhamos…” (Pág. 41, Seminário V)
- Expressões cunhadas por Freud, na Psicopatologia da Vida Cotidiana
- Lacan. Seminário 2.
- Em referência ao filme de mesmo nome, de Walter Salles, e ao texto “A escola, ainda…”, (2018 – 25 anos do Ato Freudiano) constante do Blog do Ato Freudiano.