Rasura no Real: um esboço do passe que subverte

19 de junho de 2019by Ato Freudiano0
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Rasura no Real: um esboço do passe que subverte

Maycon Ataide Lenci*

A finalidade do presente trabalho, construído a partir de restos do cartel “Psicanálise e arte contemporânea” é demonstrar o elo dos mecanismos da arte na psicanálise. Aquela que envia uma mensagem em sua forma invertida, na qual poderia anunciar algo do sujeito. Destaco o significante “passe” para revelar a importância da sua condição de ação na partida e da constância pulsional causada pela denúncia de um objeto perdido na origem. Um acontecimento; causado por fragmentos da representação na linguagem e o seu efeito na relação entre o eu e o outro. Uma realização que escapa de um momento temporal e se perde em ato. Para tal início de trabalho, se faz necessário lançar mão da palavra esboço, que está presente no título supracitado e que se apresenta nas artes, como aquilo que faz o delineamento dos traços iniciais em uma obra. Em etimologia, por definição, o esboço diz respeito aos primeiros traços de um desenho; algo rápido para um estudo inicial. O traço único do pincel na caligrafia chinesa por exemplo, faz referência a primeira manifestação do sujeito. O próprio ato de fazer o traço convoca o corpo a uma performance que deixa cair algo. Um articular e desarticular daquilo que está relacionado entre o enunciado e a enunciação. Este apelo do ato à letra é fruto de um questionamento da relação imagem e linguagem que abre campo com o movimento de mudança de posição. É o que aparece por exemplo, no sonho de Freud com Irma onde se destaca a formula da substancia trimetilamina. Ao partir o véu da imagem e do espelhamento das palavras que estão contidas na medida estética, o acontecimento põe amostra, como já dizia Freud que “o eu não é mais senhor em sua própria casa”. É como denuncia o poeta e desenhista  Henri Michaux “quem deixa um traço, deixa uma ferida” (RIVERA,2005).

Aqui traço o caminho que me é possível de fuga da cristalização. Retorno em Freud, algo da posição central da estética, que ao ser questionada pela via da pulsão de morte deu origem ao denominado: o estranho. Este significante traumático de Freud, que insiste e repete, nos traz algo muito caro as artes por mostrar uma alternância do olhar que forma o seu duplo. A imagem, um sintoma cristalizante do conflito daquilo que pode ou não ser mostrado, convoca o corpóreo e atribui a ele o status de constituidor do sujeito. O que falta à imagem e tira seu lugar de completude apaziguadora é ao mesmo tempo aquilo que a sustenta. Este buraco imaginário ocorre devido a nomeação do familiar pelo estranho freudiano, que rearranja seu encadeamento de significantes pela sua constituição de vazio. É uma falha ou fissura apresentada pela arte com forma de desmaterialização da estrutura de exposição existente. A arte desmaterializada não tem lugar no tempo e no espaço com medidas convencionais (CAUQUELIN,2008). Novamente é um acontecimento; passe constante de inversões e deslocamentos entre lugar e vazio que promove uma perda. É a renúncia da condição de sujeito, uma produção de exílio por parte do artista para possibilitar a realização da sua obra. Lugar atópico lacaniano, que a arte nos antecipa através da contradição que promove o deslocamento entre estranho x familiar; vazio x cheio; dentro x fora. Um lançamento que se perde no tempo e organiza um espaço. Sobre isto o filósofo Peter Pal Pelbart, diz “como se o tempo fosse uma grande massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias entre os pontos nela assinalados”. Este ato de desposicionar promove uma desorientação do sujeito rumo ao originário, das ding freudiano, um a priori a linguagem que provoca barulhos pela fala e sulcos de onde surge um novo representante de estrutura chamado objeto a. Ponto abjeto do real que subverte, faz quebras e formam ruínas ao mesmo tempo que é lançado para fora. Como nos diz Lacan “o real não cessa de não se escrever”. Ele impõe limites a representação causando a sua necessidade de relançamento em repetição. Algo bem comum ao sonho.

Pela abertura do movimento em repetição que se constitui o meio para se afastar do trauma, podemos adentrar na questão da arte contemporânea que marca o retorno do sujeito. Acontecimento de vanguarda que vem por em evidencia o Real, como aquele que nega a realidade existente constituída pela cobertura imaginaria dos objetos. Destaco como exemplo para este trabalho, o artista americano Andy Warhol precursor da pop art nos Estados Unidos. Dotado de engajamento político, Warhol se sentia incomodado com o estilo americano baseado no consumo com fetiche por mercadorias e estrelas da mídia. Objetos de consumo do capitalismo, que ao cair da posição sublime fazem dejeto. E como Warhol, denunciava esta cristalização do american way of life? Através da repetição. Mas não pela via da reprodução, por si mesma, já que o objeto perdido não tem como ser representado. Warhol, citado em Foster (2017), nos diz “gosto que as coisas sejam exatamente as mesmas, quanto mais se olha para o exatamente o mesmo, tanto mais ela se perde em seu significado e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”. Aqui parece que o artista usa da repetição freudiana “wiederholen” que visa drenar o significado do evento, para integra-lo a economia psíquica e proteger o eu dos afetos. Esta necessidade de proteção aponta para o Real e que durante o acontecimento se rompe e subverte a letra. Uma causa acidental, que segundo Foster (2017) Lacan chama de touché. Para Foster (2017), o touché de Warhol surge no pipocar (poping) da pop art repetido na imagem. Esta ruptura pode ser vista na diluição das cores em sua obra, que são indicadores visuais de um toque no Real. Warhol utiliza as imagens que remetem a um choque. Depois repete a mesma para proteger esta ordem e produz através de técnica, uma segunda organização ao trauma onde o touché rompe o anteparo inicial. Por fim, de acordo com Foster (2017), Lacan assimila o Real a um trocadilho e diz que ele é troumatic. Trou como pop´s ou buraco que não conseguimos dizer o que é, apenas tenho a impressão de toque, disto que segundo Barthes, “grita em silêncio”.

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*Participante do Ato Freudiano – Escola de Psicanálise

Referências

CAUQUELIN, A. Frequentar os incorporais: Contribuições a uma teoria da arte contemporânea, Martins Fontes, 2008.

FOSTER, H. O retorno do Real, UBU, 2007.

LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

RIVERA. T. Guimarães Rosa e a Psicanalise: Ensaios sobre imagem e escrita, Zahar, 2005.

__________. O avesso do Imaginário: arte contemporânea e psicanálise, Cosacnaify, 2013.


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