O efêmero: esse Outro lugar…

24 de agosto de 2017by Ato Freudiano0
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O efêmero: esse Outro lugar…

Maria do Carmo Motta Salles

Resumo: A psicanálise desvela o valor lógico do efêmero como condição de verdade. É apenas isso que a faz perdurar – dar um lugar ao efêmero que pode ou não ter um efeito de raridade no tempo – ou seja, o efêmero não é esse Outro lugar com reticências, é o que por excelência, possibilita instantes decisivos de corte à astúcia do discurso capitalista que comanda os rumos do mal-estar contemporâneo.

Palavras-chave: efêmero, real, impossível, obra, ato analítico.

“O espelho é o também de você nunca”

(Millôr Fernandes)

  

O encontro inesperado com essa frase de Millôr Fernandes me impulsionou a escrever este texto. De um título já pensado antecipadamente, que se enlaçava ao tema do Colóquio, mas ainda como um indício de uma convicção tênue, à decisão de escrever algo nessa direção. Porém, não sabia por onde ir. Um indício velado é, portanto, suficiente para indicar um caminho, mas muitas vezes se perde numa zona de sombra espessa. No entanto, ao me deparar com a frase, efêmera, vinda desse Outro lugar, de fora, da intrusão do real, uma certa possibilidade se abriu para a escrita deste texto. Um alhures se fez causa, presentificando o que não se sabe e ecoando o insabido do desejo do Outro.

A frase de Millôr nos apresenta, de uma forma extremamente condensada, o que Lacan abordou no estádio do espelho, apontando-nos uma operação de soma (também) e subtração (nunca), ou seja, afirmação e expulsão, em um golpe só, que indica o lugar vazio de onde o sujeito emerge. Porque a imagem só se mantém momentaneamente e, em um piscar de olhos, já se terá transformado. A imagem é como uma coisa continuamente flutuante. Então, a idéia de totalidade de um corpo é efêmera e instantânea e se perde no instante seguinte.  É de um lugar vazio que o sujeito é lançado e se lança à procura de um sentido, e só no limite do nonsense se impõe uma invenção diante da impossibilidade do real. Mas, em sua constituição e em seu caminhar pela vida, o sujeito tenta desesperadamente se agarrar a uma totalidade e, nas suas idas e vindas pelo simbólico, engessa o imaginário e busca empalidecer o que do real comparece, fazendo sintoma. A psicanálise, ao ler esse movimento da estrutura do ser falante, se sustenta em uma aposta: o essencial é que, tocando o ponto limite entre o real e o simbólico,  isso se diga, continue a se dizer, porque há certamente o inexprimível que se mostra.  A esse respeito, Lacan (1973) nos diz:

Esta função do impossível não deve ser abordada sem prudência, como toda função que se apresenta em forma negativa. Eu quereria simplesmente sugerir-lhes que a melhor maneira de abordar essas noções não é tomá-las pela negação. Este método nos levaria aqui à questão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente o contrário do possível, ou bem ainda, porque o oposto do possível é seguramente o real. (LACAN, 1973, p. 159)

Wajcman (2012, p. 62) afirma que “o artista, o escritor, o poeta e o psicanalista possibilitam mostrar e dizer o que não pode ser visto, nem dito – visam o impossível enquanto impossível”. Ao se situarem, portanto, na mesma curva que é aquela da estrutura, encontram sua razão na própria obra e no próprio ato analítico. E, em decorrência disso, produzem ondas em cada sujeito para que algo novo possa emergir. O que virá a partir dessas ondas incide sobre o coletivo e poderá provocar um efeito discursivo inovador.

O real se distingue porque, em sua economia e imposição, exige algo novo, que é justamente o impossível. Há uma imposta facticidade do real e, também, uma imposta facticidade do efêmero, que é um dizer sobre o real – que se presentifica insistentemente, forçando-nos a cavar alguma saída não prevista no ponto de partida. O efêmero é um dos nomes do não todo: é um espanto benvindo que se impõe impedindo a pura dispersão do real, possibilitando o caminhar da civilização. É, portanto, esse Outro lugar que, ao circunscrever o real, reenvia o vai e vem da pulsão, envolvendo as zonas de superfície do corpo e as aberturas erógenas. O real força as aberturas como pontos de evanescência onde o interno encontra o externo. O efêmero é o nome do sujeito pontual e evanescente, como efeito da abertura e do fechamento do inconsciente.

Se considerarmos que “o inconsciente é a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito” e que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante, não se pode admitir o corpo falante a partir de qualquer espécie de substância. O sujeito é evanescente e aparece no momento em que a dúvida se reconhece como certeza, e não a partir de um logos que se encarnaria em alguma parte. A abordagem freudiana afirma, no entanto, que “as bases desse sujeito se revelam bem mais largas, mas ao mesmo tempo bem mais servas quanto à certeza que ele rateia. É isto que é o inconsciente” (LACAN, 1973, p. 122). O inconsciente está fora – nesse Outro lugar – como aquilo que insiste e revela um impossível sobre o qual se funda uma certeza. Mas o inconsciente não se encontra em todo lugar: ex-siste e se instaura em ato a partir do desejo do analista.

Quero ressaltar bases bem mais largas e ao mesmo tempo bem mais servas porque nos indicam justamente a estrutura escandida do batimento da fenda em que o sujeito se afirma e onde o desejo pode emergir. Como nos diz Lacan: “Ora, se o desejo não faz mais do que veicular para um futuro sempre curto e limitado o que ele sustenta de uma imagem do passado, Freud o diz, no entanto, indestrutível” (LACAN, 1973, p. 35).  Então, podemos dizer que o desejo se apresenta de uma forma efêmera e pontual, mas traz algo novo e alarga o que anteriormente era apenas uma imagem – o também e nunca – de um passado. Abre para que as bases do sujeito possam se relançar diante da certeza efêmera que é veiculada para um futuro sempre curto e limitado.

Considero importante pensarmos sobre o significado do termo ratear: 1) distribuir ou dividir segundo a proporção que, por justiça, toca a cada um, ou seja, divisão proporcional de bens; 2) não funcionar, falhar, perder a força, tornar-se debilitado. É, portanto, através da falha que uma nova proporção pode se colocar. Mas, ao mesmo tempo, é através da mesma falha que o desejo pode se debilitar. O que Lacan nos aponta é que a função do ratear está no centro da repetição analítica, indicando-nos que a posição de cada um vai se revelando à medida que o trabalho de uma análise vai seguindo seu curso. E o que Freud nos diz é justamente que existem duas posições distintas em relação ao efêmero: uma revolta diante da facticidade do efêmero ou o reconhecimento de um valor de raridade no tempo.  A psicanálise desvela, portanto, o valor lógico do efêmero como condição de verdade.  E é exatamente esse Outro lugar, obscuro, opaco e pontual que move o artista ao ser reconhecido como valor e pode se tornar um valor de corte, abertura e novidade no campo da cultura, mantendo a pulsação necessária à sua sustentação. É também esse Outro lugar indizível e efêmero que, ao ser nomeado por Lacan como objeto a, se inscreve definitivamente no discurso do século XX, possibilitando uma certa apreensão de elementos estruturais que revelam, de uma maneira inexorável, a condição efêmera e despossuída de todo paraíso perdurável que sintetiza o homem contemporâneo.

Diante do exposto, considero importante pensarmos o lugar do passe na escola como a aposta de Lacan em um instante revelador da estrutura do ser falante.  O discurso analítico pode chegar a um resto que afirme a radicalidade do efêmero como um dizer que apreendeu algo do real – “onde o real alcance o real”.

Como nos diz Françoise Samson, “O passe é um instrumento que serve para manter aberta uma questão: como e com quê um ser falante é fabricado?” (SAMSON, 2010, p. 27).  O passe, tal como o segundo tempo do trauma, pode capturar algum elemento estrutural e ser transmitido à comunidade de analistas. Diante da impossibilidade do real, pode-se enunciar algo novo – um saber inédito.

E se o sujeito, em um primeiro tempo, se depara, no final de sua análise, com o real que comparece em toda a sua potência, pode, em um segundo tempo, formular um dizer sobre isso. É apenas isso que faz a psicanálise perdurar – dar um lugar ao efêmero, que pode ou não ter um valor de raridade no tempo. O efêmero não é esse Outro lugar com reticências. É o que, por excelência, possibilita instantes decisivos de um certo contraponto à astúcia, trama e tramóia do discurso capitalista que comanda os rumos do mal-estar contemporâneo.

Então, nesse momento da história em que estamos, há a necessidade de analistas. Essa necessidade está ligada a alguma coisa que se tornou impossível na vida cotidiana dos seres falantes. Alguma coisa tornou-se impossível como efeito de uma certa invasão do real. O real, para a ciência, pôs-se a pulular: ele se tornou uma presença, de uma insistência que não tinha até então. Essa presença, que nos estorva, nos faz considerar que a psicanálise, assim como as artes, ao darem um lugar lógico ao efêmero, são os únicos respiradouros que podem nos permitir sobreviver ao real.

 

Referências bibliográficas:

FREUD, S. Efêmero. Tradução de Eduardo Vidal. In: Da Experiência Psicanalítica, Publicação – Escola Letra Freudiana, nº. 41, Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 2009.

LACAN, J. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

SAMSON, F. Conferência: Analista da Escola (A.E.). O a posteriori. Tradução de Ana Lucia Teixeira Ribeiro. In: Documentos para uma Escola V, Publicação – Escola Letra Freudiana, ano 29, nº. 0’’’’, Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 2010.

WAJCMAN, G. A arte, a psicanálise, o século. In: AUBERT, J. Lacan: O escrito, a imagem. Tradução de Yolanda Vilela. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.


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